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A liberdade não é uma premissa descolada da realidade, opina professor em palestra

publicado 06/09/2013 15h40, última modificação 11/06/2015 17h04

A discussão da liberdade no Direito Constitucional não pode ser feita a partir de premissas antropológicas descoladas da realidade. A liberdade, neste sentido, tem de ser considerada em seu contexto econômico e social. O papel do Direito, ao afirmar a liberdade, é buscar o exercício real dessa liberdade. As afirmações são do professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Daniel Sarmento, em palestra sobre o tema “Constituição e liberdade” no seminário “25 Anos da Constituição Cidadã”, na tarde desta quinta-feira (5), no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O evento é uma promoção do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF). O presidente da mesa foi o desembargador federal Mairan Maia, diretor da Escola da Magistratura da 3ª Região.

Daniel Sarmento indaga sobre o significado da liberdade na esfera privada. De acordo com ele, no século XIX, os filósofos políticos, quando falavam de liberdade, a enxergavam como ausência de constrangimentos externos à ação do agente. E tinham um alvo: o Estado. “O discurso da liberdade, assim, pregava a necessidade de moderação do poder do Estado. A própria ideia do Federalismo passou por essa preocupação, que também conduziu à compreensão de que era necessário salvaguardar certas liberdades públicas, colocando limites à ação dos governantes. Mas o tempo mostrou que isso era pouco”, relatou o professor. 

Ele prossegue ressaltando que houve, dessa forma, a constatação de que a opressão é capilar, está em todo lugar e que, portanto, talvez não fosse adequado chamar de liberdade a simples ausência de constrangimento externo. Começou-se a questionar, portanto, se o foco dessa liberdade seriam apenas as relações em que em um dos polos figura o Estado. “A premissa é de que não somos seres isolados e não se trata da liberdade do ser desencarnado, e sim do homem inserido nas suas relações econômicas, que podem ser altamente opressivas, inserido em uma cultura que também pode ser altamente opressiva”, sublinhou Sarmento.

Ou seja, o perigo, segundo ele, não repousa apenas no Estado, mas pode estar também na cultura, que às vezes é opressiva, diminui, estigmatiza, marca as pessoas como não merecedoras do mesmo respeito e consideração. Um exemplo atual, mencionado por ele, é a discussão sobre a possibilidade de psicólogos curarem homossexuais. “Isto tem grande impacto nas liberdades de uma pessoa homossexual, já que o ser humano habita um universo de relações que em boa parte são constitutivas do que ele é”, acentua o professor. No seu entendimento, o olhar que o outro projeta pode causar abalos tão grandes na liberdade quanto aquele causado pelo Estado. 

Mas ele questiona: de que forma o Estado deve disciplinar a maneira como as pessoas, nas suas relações sociais, vão encarar as outras? As intervenções do Estado, de acordo com ele, podem implicar invasão da vida privada e autoritarismo. “Na minha compreensão, o Estado pode fazer duas coisas: não pode ser neutro, pode interferir através da educação, das políticas públicas e não endossando os atos e práticas que estigmatizam. Obviamente, não pode legislar e criminalizar o ato de olhar, isto pode ser um remédio para a doença pior do que a própria doença”, opina.

Proteção desigual

Daniel Sarmento avalia que há uma proteção heterogênea da liberdade no sistema jurídico constitucional brasileiro. “A Constituição não protege todas as liberdades da mesma forma, com a mesma intensidade. Quando estamos diante de liberdades existenciais e políticas, a proteção é muito mais forte, já que o exercício dessas liberdades não resvala para discussões distributivas”, observa. Mas, segundo ele, no campo das liberdades econômicas, na medida em que nosso sistema protege mais a propriedade de alguns, isso coloca graves obstáculos à promoção de políticas de redistribuição.   

Sarmento pontua que, enquanto algumas correntes defendem excessiva intervenção estatal na economia, outras defendem a mínima intervenção. Para ele, não é compatível com nossa Constituição nem a total liberdade à iniciativa privada e mínima intervenção – o chamado laissez faire –, nem tampouco a concepção de uma economia totalmente planificada, em que não há espaço para a iniciativa econômica privada. “Esses dois modelos estão fora de esquadro mas, no interior dessa moldura, temos várias possibilidades”, opina o professor. Ele considera que o povo é quem deve optar pela melhor possibilidade, através da via política, das eleições, da participação cotidiana. “É legítimo que as forças políticas se digladiem. Não cabe às elites políticas de plantão definir os temas em torno das quais as pessoas vão se mobilizar”, sustenta Sarmento. 

Sarmento pediu atenção, especialmente, ao campo em que, na sua concepção, o País mais precisa evoluir, e no qual nossa trajetória constitucional mergulha “no abismo”: o fato de o Brasil hoje ter uma população carcerária em torno de 550 mil pessoas. O próprio ministro da Justiça, segundo ele observou, diz que as nossas condições são de masmorras medievais. Ainda temos, de acordo com ele, um sistema de investigação extremamente falho. “O que seria do sistema carcerário brasileiro se o Poder Judiciário funcionasse melhor? Teríamos a maior população carcerária do mundo!”, exclamou. Ele observa que uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional, formada a respeito do tema, constatou que o tamanho médio das celas no País é 1,6 m² por pessoa. E que no Estado de São Paulo, como o sistema prisional feminino não fornecia absorventes íntimos, as presidiárias usavam miolo de pão. 

“Mas esses direitos são invisíveis. Hoje, ninguém mais discute a possibilidade do controle judicial da administração pública. No entanto, sistematicamente, todas as ações judiciais em que se postulam melhores condições carcerárias, o Judiciário responde que nada pode fazer em virtude da reserva do possível. Por serem pessoas, indivíduos têm dignidade. No entanto, não incorporamos a ideia de que os presos são pessoas e, portanto, pensamos que eles não têm direitos”, criticou. Ele finalizou sua exposição lembrando que liberdade e igualdade são valores que se complementam – um não sobrevive sem o outro.