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Escola de magistrados discute efeitos dos direitos fundamentais no direito privado

publicado 16/11/2011 12h10, última modificação 11/06/2015 17h12

 
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região-TRF3, por intermédio da Escola de Magistrados da 3ª Região-EMAG, abriu na noite da quinta-feira, 10/11, o III Seminário Internacional Brasil-Alemanha com a palestra “Efeitos dos Direitos Fundamentais no Direito Privado”, proferida pelo professor Doutor Rolf Stürner, diretor do Instituto de Direito Processual Civil Alemão Comparado. O professor foi recepcionado pelo presidente do TRF3, desembargador federal Roberto Haddad, e pela diretora da EMAG, desembargadora federal Salette Nascimento e pelo juiz federal coordenador do evento, Márcio Mafra Leal, dentre outras autoridades.

O palestrante, mundialmente reconhecido como professor de direito civil e de direito processual civil, tendo já lecionado em Harvard, Genebra e Nagoya, discorreu sobre a relação entre os direitos fundamentais e privados em seu país de origem. Ele assinala que os direitos fundamentais funcionam como uma defesa contra os abusos do Poder Público, mas também delimitam as relações dos cidadãos entre si.

No que diz respeito ao desenvolvimento da relação entre os direitos fundamentais e privados em seu país, o professor afirma que leis de direito privado limitam a liberdade dos cidadãos face ao interesse público. No que diz respeito ao patrimônio e à família, por exemplo, a constituição alemã consagra a igualdade entre homens e mulheres. As leis infraconstitucionais, no entanto, não se comportavam da mesma maneira, pelo menos até a década de 70, quando muitas delas foram declaradas inconstitucionais ou nulas. O Código Civil, por exemplo, limitava a administração do patrimônio do casal e o e exercício do pátrio poder à figura do homem. Havia também a determinação da realização de testes genéticos para aferir a paternidade dos filhos. A mãe que não indicasse o nome do pai ao filho podia ser punida com multa e privação da liberdade.

No que se refere a parceiros do mesmo sexo, a constituição alemã consagra a igualdade de direitos entre elas, mas não permite a adoção de crianças por essas pessoas. No caso do parentesco biológico, é assegurado o direito de herança às crianças, protegendo-as contra a deserdação. É proibido também o casamento entre irmãos.

No âmbito dos direitos profissionais, por exemplo, existia, para os advogados, um instituto denominado quota litis, que limitava a cobrança de honorários. Esse instituto acabou sendo declarado inconstitucional, por entenderem que a fixação de honorários deve estar relacionada ao grau dificuldade da causa.

No terreno da liberdade de expressão, opinião, mídia e artes, entende-se que a exigência de retratação ou indenização sufoca a liberdade individual, representando uma diminuição da proteção à personalidade, principalmente quando a temática abordada é de interesse público.

Em relação à internet não há proteção pela legislação existente. Os direitos pessoais convivem lado a lado com a liberdade na mídia, porque se entende a rede como um multiplicador de opinião tal como outros veículos da mídia, porém não há responsabilidade estabelecida, seja para a plataforma, o provedor, o usuário. O professor alerta para o fato de que, aparentemente, na internet, tudo é permitido, o que acabará por gerar colisão com outras liberdades.

Na esfera dos direitos da personalidade, prevalece a proteção da identidade individual quando se mistura o real com o ficcional dentro do que se considera liberdade de arte. O professor declara que obras de Goethe ou Thomas Mann poderiam ter sua obra atingida por essa espécie de proteção.

Na área médica, a autodeterminação do paciente convive com a disposição sobre vida humana. No direito alemão existe a responsabilização por erro médico, mas nos casos concretos são examinados também os níveis de informação do paciente sobre o tratamento bem como a extensão de seu consentimento.

No que diz respeito à fiança prestada por parentes em contratos de empréstimo, durante a década de 70, havia o costume de ela ser prestada por cônjuge, pais, ou filhos do mutuário mesmo quando o valor da dívida era maior do que o patrimônio do fiador. O tribunal constitucional julgou imoral esse tipo de atitude por parte dos bancos, isto é, a exigência de fiança prestada por parentes ou cônjuge, por considerar que isso fere o princípio da autonomia privada, ou seja, a parte que oferece este tipo de fiança estaria sendo manipulada em sua autodeterminação no momento da assinatura do contrato, o que jogou por terra o princípio dos pacta sunt servanda (os contratos devem ser cumpridos).

Nos contratos de locação, locador e locatário tem os mesmos direitos. Quando o locador aumenta arbitrariamente o valor do aluguel, cria um problema social. Quando surge um conflito entre os sujeitos dessa relação jurídica é feito um balanceamento dentro da esfera do direito de propriedade e têm prevalecido as decisões favoráveis ao locatário.

Após esses exemplos, o palestrante discorreu brevemente sobre relação entre os direitos dos diversos países que compõem a União Europeia e a legislação por ela própria produzida. De acordo com ele, a União Europeia cria um direito privado comunitário. Por exemplo, ela está preocupada em como as regulações de mercado podem interferir na liberdade do jornalismo econômico. Também as relações trabalhistas tem sido objeto dessa legislação comunitária no sentido de corrigir discrepâncias salariais entre homens e mulheres e a discriminação por idade. O tribunal europeu de direitos humanos tem interferido na aplicação e interpretação do direito privado dos diversos países. Por exemplo, o tribunal indicou aos países em que a mãe não casada não podia exercer o pátrio poder, indicando ao legislador uma mudança de regras. “As famílias não funcionam de forma idêntica em toda a Europa”, observa o professor Rolf Stürner, “O tribunal europeu de direitos humanos corre o risco de se transformar numa ‘escola’ para os países europeus”, critica.

No caso de culturas jurídicas codificadoras, como é o caso do Brasil e da Alemanha, é importante que os conceitos de direitos fundamentais de direitos privados sejam os mais claros possíveis, diz o professor, e assevera que fazer a crítica do legislador também é tarefa do intérprete das leis. “É preciso que se tenha em mente a constitucionalidade das leis, mas também a legalidade da constituição”, analisa, “visto que a constituição também é marcada por ideias do direito ordinário”.

Comentários dos debatedores

Na sequência, um dos debatedores, o desembargador federal Mairan Maia, doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP; mestre em Direito Civil pela mesma universidade e graduado em direito pela Universidade Federal do Ceará e em Administração, com especialidade em Administração Pública pela Universidade Estadual do Ceará, realizou sua intervenção observando que a existência das disposições constitucionais na nossa carta indicam o elevado estágio de civilização da sociedade, que reconhece a prioridade dada à pessoa humana como um elemento necessário ao desenvolvimento e à paz social. Assinala que os direitos fundamentais e o direito privado não são antagônicos, porque não são estanques e que os direitos fundamentais não se restringem àqueles que são constitucionalmente previstos.

O debatedor Mairan Maia informa que, diferentemente do tribunal constitucional alemão, o STF tem analisado a relação entre os direitos fundamentais e o direito privado pela não recepção das regras discriminatórias. A esse respeito, podem-se mencionar às regras atinentes à filiação e às relações familiares. “O STF, ao contrário da Alemanha, admite a eficácia direta das situações sem a necessidade de uma norma infraconstitucional”, declara o desembargador, tanto que limitou a autonomia privada de uma empresa que tratava de maneira diferente funcionários brasileiros e estrangeiros. O desembargador mencionou ainda o julgamento de um recurso extraordinário que obstou a exclusão de um sócio da União brasileira de compositores sem observância do princípio do devido processo legal e da ampla defesa.

O desembargador comenta que se pode apontar o subjetivismo do julgador na análise de direitos fundamentais envolvidos. Por exemplo, no caso da impenhorabilidade do bem de família do fiador de um contrato de locação. A lei de locação introduziu a regra da penhorabilidade. Estão na balança a proteção ao direito social de moradia e o equilíbrio do mercado (que exige garantias mais custosas). Nesse caso, houve o reconhecimento da possibilidade de uma norma infraconstitucional limitar um direito fundamental. “Cada norma tem sua função e seu papel”, aponta o desembargador.

Já o debatedor Virgílio Afonso da Silva, livre docente em direito constitucional pela Universidade de São Paulo-USP; doutor pela Christian Albrechts Universität zu Kiel, na Alemanha; graduado pela USP, onde também fez o mestrado e é professor titular de direito constitucional, iniciou sua intervenção observando que no Brasil nunca houve um grande debate sobre o efeito dos direitos fundamentais sobre as relações privadas. A questão que se coloca, no seu entender é a de como harmonizar os interesses dos privatistas, que vêem com desconfiança a aplicação dos direitos fundamentais constitucionais e dos publicistas, que às vezes exageram na defesa da aplicação desses direitos.

Ele também destacou que, no caso alemão, a aplicabilidade dos direitos fundamentais se faz de forma indireta, isto é, por meio da elaboração de lei infraconstitucionais, e no caso brasileiro, a aplicação é direta, sem necessidade de legislação infraconstitucional. Ele citou o caso das operárias de uma fábrica de lingerie que se submetem à revista íntima, contratualmente autorizada. “Se assinaram contrato, abriram mão de uma parte de sua privacidade”, assinala. O mesmo pode-se dizer do dono de uma empresa que lê a correspondência eletrônica de seus empregados. “É claro que quando uma pessoa precisa do emprego aceita qualquer coisa. E é o caso de o tribunal, quando provocado, intervir”.

O debatedor menciona ainda a recente proibição de fazer humor com políticos, ressalvando que “é da essência do humor submeter pessoas a situações constrangedoras”, apontando uma nova contradição.

Ele entende que o STF aplica a fórmula de que o que é vedado ao Estado é vedado ao indivíduo. Nessa linha, a autonomia privada, em geral, cai por terra. Para ele, a virtude estaria no meio termo, como ocorre na Alemanha, o que seria uma solução proveitosa para o Brasil.

O último debatedor da noite, o professor doutor Dimitrios Dimoulis, pós-doutor pela universidade Arland, bacharel em Direito pela Universidade Nacional de Atenas, mestre em Direito Público pela Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne); professor da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais, assinala a recente relevância, nos últimos 15 anos, da dogmática dos direitos fundamentais no Brasil.

O professor informa que na Alemanha foi desenvolvida uma dogmática que resolve conflitos entre direitos fundamentais dentro e fora da constituição, segundo o princípio da proporcionalidade. Ele também observa que a fundamentação das decisões quando se resolvem conflitos concretos é de grande importância. Segundo ele, as condições de recepção de uma dogmática estrangeira apresentam dois problemas: o primeiro diz respeito à temporalidade, isto é, na Alemanha, as codificações são anteriores ao texto constitucional. A influência corretiva do Direito Privado se dá a partir da constituição. No Brasil, o fato de muitas codificações serem posteriores ao texto constitucional, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, traz uma mudança crucial na forma de pensar essas relações, devida a uma presunção de compatibilidade dessas normas com o texto constitucional.

“Se trata de rever interpretações do direito privado à luz do próprio texto constitucional, de maneira sistemática”, defende o professor Dimoulis. É preciso pensar nos limites do direito privado quando se apresentam alternativas. “Por exemplo, até onde se aplica do Código de defesa do Consumidor? Talvez a Constituição possa dar alguma luz, mas não no sentido de reformar do direito privado que, na maioria dos casos, é posterior ao texto constitucional. Pode haver um ou outro dispositivo problemático, mas quando há conflito de normas infraconstitucionais, pode-se declarar a inconstitucionalidade de uma delas e acabou”, argumenta Dimoulis.

O segundo problema consiste na presença do direito privado, tanto na Alemanha como no Brasil, dentro do próprio texto constitucional. “Existem uma série de normas constitucionais que só fazem sentido a partir da dogmática e da jurisprudência do direito privado”. O direito privado é, assim, um pressuposto de compreensão da Constituição brasileira ou de qualquer outra constituição, crê Dimoulis. Por exemplo, o direito de propriedade, a noção de ato jurídico perfeito. No caso da união entre pessoas do mesmo sexo, o STF enfrentou um conflito entre normas constitucionais: tivemos uma ideia de interpretação conforme o Código Civil. Há uma norma constitucional que entende casamento ou união estável seja algo entre homem e mulher e outro conjunto de normas constitucionais que diz que em razão da igualdade, da dignidade humana, da tutela das minorias e assim por diante, pessoas do mesmo sexo biológico têm o direito de ter uma relação semelhante, equiparada a uma união estável. Aqui não foi reformulado o direito privado, mas houve uma nova compreensão da constituição, que podemos chamar de sistemática ou harmonizadora.

“Vários casos tidos como exemplares de uma constitucionalização do direito privado nada mais são do que modificações de equilíbrio e de interpretação dentro do texto constitucional”. Evidente que as consequências são claras para o direito privado, conclui o professor.

Andréa Moraes
Assessoria de Comunicação